"Não tenho a menor necessidade de aparecer nua na frente de homem", diz Cássia Kis

Por Marie Claire 29/09/2020 09h09
Por Marie Claire 29/09/2020 09h09
'Não tenho a menor necessidade de aparecer nua na frente de homem', diz Cássia Kis
Atriz Cássia Kis - Foto: Caroline Curti (RM MGMT)

A pandemia levou Cássia Kis a refletir sobre a finitude, tema que também perpassa o drama de sua personagem, a bruxa Haia, na série Desalma – no ar a partir do dia 22 na Globoplay. A série, criada por Ana Paula Maia e com direção artística de Carlos Manga Jr., tem a mitologia eslava como pano de fundo, com um enredo sobrenatural sobre a não aceitação da morte. Na tarde de setembro em que conversou com Marie Claire, fazia três semanas que sua mãe, Piedade, havia morrido sem que Cássia pudesse ter se despedido. “Não tem ensaio para isso.” A mãe criou os três irmãos e ela com dificuldade. A família, muito pobre, vivia em um cortiço em São Caetano do Sul, no ABC, Grande São Paulo, e Cássia chegou a dormir na rua quando saiu de casa, antes de se tornar uma das mais importantes atrizes do país e de ter entrado para a história das telenovelas por, entre outros feitos, matar Odete Roitman, em Vale Tudo (1988).


Numa conversa sem objeção a nenhum tema, Cássia falou de assuntos dolorosos, como assédio sexual, moral e até dermatológico que sofreu. E de um de seus maiores arrependimentos: um aborto feito em 1985. Hoje, contrária a qualquer interrupção de gravidez, ela tem quatro filhos, de dois dos seus cinco casamentos: Joaquim, 24, Maria Cândida, 23, Pedro Gabriel, 18, e Pedro Miguel, 16. E diz que nunca foi tão mãe quanto agora, confinada em sua casa no Rio com os três filhos homens. Ela também conta que nunca esteve tão bem sozinha e que não sente mais necessidade alguma de sexo. Prefere buscar sabedoria. A seguir, a da conversa com Marie Claire.


MARIE CLAIRE Desalma fala sobre a imortalidade da alma. Como você vê a morte e qual a mensagem da série?


CÁSSIA KIS Com o confinamento, temos a oportunidade de refletir sobre a morte. Está claro, para mim, que tudo diante dos meus olhos tem finitude. Mas o que morre é nosso corpo, que fica cansado. No budismo você nasce, cresce, envelhece, adoece e morre. Isso aqui é uma passagem. Minha personagem é uma mulher sozinha, que vive na floresta. Em 1988, a filha dela desaparece numa festa de Ivana Kupala [cerimônia milenar ucraniana]. Trinta anos depois, decidem realizar novamente a festa e coisas começam a acontecer. A série é uma oportunidade para debater vida e morte. Perdi minha mãe há três semanas. É difícil perder uma mãe, não tem ensaio para isso. Todos nós só existimos porque temos uma mãe.


MC Sua personagem é uma bruxa. Você acredita em bruxaria?


CK Meu pai era húngaro. A Transilvânia, lugar das bruxas, fazia parte da Hungria. Tenho uma espiritualidade grande. Sempre gostei de mergulhar dentro de mim. Não estou na rede social, mas buscando ouvir pessoas que me acrescentem. Eu não vim ao mundo para passear. Olho para trás e vejo uma vida de muita luta. Estou enfiada em casa, sem empregada, e cuido de tudo. Podo até árvore. Nunca fui tão mãe. Estou focada e alimentando minha espiritualidade. Mais do que nunca, preciso me preparar para uma passagem, para a morte, não é? Se eu for contaminada, posso morrer e quero estar pronta. E posso te dizer que estou pronta para morrer. Mas não queria que fosse agora, porque meu filho mais novo ainda tem 16 anos, e estou vivendo um momento esplêndido com eles.


MC Você é budista?


CK Não, mas gosto muito da filosofia budista, uso técnicas de meditação do budismo. Minha mãe colocava os quatro filhos ajoelhados ao lado dela para a gente rezar; fiz catecismo, ia à missa. Se você me perguntar qual o meu desejo mais ardente, te digo: me encontrar com Jesus.


MC Por quê?


CK Meu amor por Jesus sempre foi gigante. Mas, para chegar até ele, preciso ter a experiência do amor dele por nós. E não tenho a prática da bondade. Por mais que tenha visto minha mãe, Piedade, numa vida tão pobre... A gente morava num cortiço em São Caetano do Sul (SP) e, quando aparecia alguém pedindo comida, a gente tinha tão pouco e mesmo assim ela repartia. Ainda faço muito pouco.

MC Teve alguma epifania, reviu valores nesta pandemia?


CK Tenho mudado a cada passo, estou mais consciente. Há coisas que estou deixando ir, amores, amizades. Não estou desesperada querendo trazer algo de volta. Preciso correr atrás de sabedoria, de me relacionar melhor com o outro, compreender o que se passa em minhas relações, no mundo. Venho de cinco casamentos, e estou sozinha aos 63 anos. Não há culpados. O que há é uma trajetória de erros. Tem muita coisa que gostaria de poder corrigir. A pandemia está me fazendo uma pessoa melhor.

MC Acha que aprenderemos algo após a pandemia?


CK Muitos não vão aprender nada. A quantidade de pessoas que faz coisas sem uma gota de consciência, sem pensar no todo, é assustadora. Temos uma oportunidade para melhorar, mas não é para todos. Sabemos que o Brasil precisa de educação de qualidade. Mas o que a gente faz? Como nos movemos? Moro numa casa de 900 m2 na Barra da Tijuca, pego meu Land Rover, ligo o ar-condicionado, boto meu filho de 16 numa escola de classe média alta e no caminho vejo crianças pedindo dinheiro. Seguimos de olhos fechados.


MC Você disse que sua maior satisfação em relação a seus filhos é que “são pessoas que podem viver em sociedade”.


CK Nunca escondi minha origem humilde, dormi em banco de praça. Meus filhos não conhecem isso. Fazemos movimentos simples. Estou com eles dentro daqueles “big carros” e crianças param para pedir comida. Compramos, eles distribuem, há esse movimento de atender àquela necessidade imediata. Isso é uma coisa. Outro dia, lavando roupas do Miguel, disse a ele que poderia comprar novas camisetas, já que as dele estão rasgadas. E ele respondeu: “Pra que gastar dinheiro? Não estou saindo de casa”. Somos prisioneiros de nossos desejos.


MC Como recebeu a notícia de que a Globo fará um remake de Pantanal?


CK Em 1988, fiz Vale Tudo, tinha matado Odete Roitman. Quando terminou a novela, eu estava sem contrato com a Globo, e me chamaram para Pantanal [na extinta TV Manchete]. Fiz uma personagem linda de morrer, a Maria Marruá. Vivenciei coisas incríveis lá, gravei cenas no rio cheio de piranhas, jacarés. A novela marcou um novo momento da história da telenovela, dando de presente ao público um respirar, um contemplar a natureza. E foi quando a Globo levou um susto grande da sua concorrente, porque a novela foi um sucesso gigante. Espero agora nesse remake fazer uma participação. Pode ser abrindo uma porta que vou ficar satisfeita. Vai ser lindo, a Globo vai arrebentar. Ah, como queria ser jovem para fazer uma novela assim.


MC Em 1990, você protagonizou Barriga de Aluguel. Dava para imaginar que hoje recorrer ao útero de outra mulher para gerar um filho seria algo viável?


CK Não. O tema foi tão bom que a novela teve mais de 240 capítulos. Agradou, o que significa que precisamos conversar sobre isso até hoje. O que me interessa é a vida. Estou me perguntando se eu seria uma barriga...


MC Seria? E recorreria a essa alternativa?


CK Acho que não, adotaria. Hoje, se pudesse, abriria creche. Gosto da ideia de que somos mães, várias mães. O tema que mais me preocupa hoje é o aborto.

MC O que a preocupa no aborto?


CK Quando olho para trás, uma das coisas que teria corrigido seria um aborto que fiz em 1985. Por mais que eu tenha me inclinado diante desse problema, pedido perdão, lamentado, às vezes faço as contas e vejo quantos anos esse filho teria, se eu seria avó. Quando sei de um aborto, me dói. Sou a favor da vida em qualquer situação.

MC Muitas mulheres acima de 60 estão em um movimento de explorar a sexualidade. Como lida com isso?


CK Conheço mulheres atentas à reposição hormonal para poder estar em dia, mas eu não quero isso. Quero estar em dia com outra coisa. Meu corpo tá descendo a ladeira. Estou envelhecendo e gostando de ver. Sou uma mulher com 450 mil rugas. Não tenho concorrente. Minhas referências como atriz são, no Brasil, madame Fernanda [Montenegro], e as inglesas Judi Dench e Maggie Smith, porque elas estão preocupadas com a consciência, com as relações, com a qualidade do trabalho. Não tenho a menor necessidade de aparecer nua na frente de homem. Imagine que vou ficar escondendo isso, aquilo, para que correr esse risco? Não significa que não esteja cuidando de mim. Me masturbo com menos frequência do que há 30 anos, hoje uma vez a cada três meses. Às vezes você está num relacionamento, não tem vontade de transar, e quando vê está abrindo as pernas para o seu macho. Isso já é violento. Essa é uma das razões que fazem com que eu esteja sozinha. Nao estou mais a fim de transar, não quero. É maravilhoso esse lugar de falar não. Não preciso ter “dor de cabeça”. Queria poder viver um relacionamento com um homem em que esse encontro sexual acontecesse num lugar que não é do desejo. Tenho desejo? Se vejo uma cena sensual, me dá tesão, minha libido ainda existe. Mas só.

MC Já sofreu assédio?


CK Sofri assédio sexual quando tinha 11 anos. Venho de uma família muito pobre, em que não se ia ao médico, quiçá dentista. Mas minha mãe me levou ao dentista porque perdi um dente por cárie. Entrei sozinha no consultório e me lembro desse homem esfregar o pênis no meu braço. É assustador. Fiquei anos sem ir ao dentista, nem sabia que tinha um trauma. E isso se repetiu na vida adulta mais duas vezes, uma delas nesta década, de outro jeito. E não consegui reagir. Vivi três episódios de assédio sexual com dentista. E sofri abuso psicológico, que é horrível. Viver um relacionamento no qual a pessoa vai minando sua moral, destruindo sua personalidade. Você perde referências de valores, não acredita mais em você, é quase levada à morte. O outro te mata sem usar arma. Demora para se recuperar, para você se amar. Se não fosse minha profissão, provavelmente não estivesse viva.