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PL 2630/2020: como delimitar o que é “fake news” e deixar isso nas mãos do Estado sem correr riscos de diminuição da democracia?

Por Cledson José da Silva 05/05/2023 22h10 - Atualizado em 08/05/2023 09h09
Por Cledson José da Silva 05/05/2023 22h10 Atualizado em 08/05/2023 09h09
PL 2630/2020: como delimitar o que é “fake news” e deixar isso nas mãos do Estado sem correr riscos de diminuição da democracia?
Congresso Nacional - Foto: Google Imagens

Está em votação no Congresso Nacional o Projeto de Lei 2.630/2020, que busca regulamentar as redes sociais por meio da instituição da “Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet” (expressão utilizada na ementa do projeto).

De início, frise-se que a analise a seguir não se revela favorável à Esquerda ou Direita. Um tema como esse está acima de questões partidárias, pois diz respeito diretamente um direito fundamental de todos nós: a liberdade de expressão.

Veja-se o que o art. 5º da Constituição Federal nos assegura:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

(...)

IV - é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato;

(...)

VI - é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias;

(...)

VIII - ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei;

(...)

IX - é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença;

(...)

XIV - é assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional;

(...)

XXXIII - todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo da lei, sob pena de responsabilidade, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado.

Nessa ótica, um projeto de lei que pretenda regular as redes sociais inspira preocupação de toda ordem, já que, a depender de como seja redigido, pode ser utilizado para restringir um direito fundamental tão caro em qualquer sociedade.

Entretanto, essa semana, o mencionado PL das Fake News foi colocado para votação em regime de urgência.

O Desembargador Federal e professor de Direito Constitucional William Douglas manifestou intensa preocupação com esse regime de urgência dado ao projeto, publicando texto intitulado “No PL das fake news, urgente é debater sem correria...” (https://www.poder360.com.br/op... ). De fato, além da necessidade de um debate franco e mais amplo, deve-se atentar para questões mais profundas envolvidas no projeto.

Afinal, como delimitar o que é “fake news” em tempos de verdades relativas?

Ora, quem me assegura o que é verdadeiro ou falso? Quais manifestações estão corretas e quais estão erradas?

Na história, muitas verdades só vêm à luz vários anos depois dos fatos.

A história humana é simplesmente um grande conjunto de “verdades” superadas. O que ontem era verdadeiro amanhã se descobre que estava errado.

Quando Galileu Galilei, em 1610, publicou um livro adotando as ideias de Copérnico, no sentido de que a terra não era o centro do Universo, que tudo girava em torno do Sol, foi julgado e condenado pela Inquisição (Poder da época), porque sua ideia seria "tola e absurda na filosofia e formalmente herética, pois contradiz explicitamente em muitos lugares o sentido da Sagrada Escritura” («The Galileo Affair: A Documentary History». University of California Press. 1989. Original em inglês).

Hoje, não preciso aqui dizer a obviedade de que a Terra não é o centro do Universo. Mas naquela época, para a Igreja, provavelmente aquilo era uma grande “fake news” de Galileu ensinando “errado” os jovens.

Esse é só um exemplo dentre tantos.

Houve um tempo, em que o voto feminino era uma ideia inaceitável; hoje, todos o defendemos com unhas e dentes como componente essencial da Democracia.

Até bem pouco tempo, o casamento entre pessoas do mesmo sexo era uma idéia sem guarida jurídica, mas atualmente encontra respaldo no ordenamento.

E a escravidão? Quando alguém passou a bradar idéias de liberdade ao povo negro, será que foi bem aceita pela sociedade e pelo poder dominante da época?

Há 11 anos, na ADI 4274, o STF disse que as pessoas poderiam sair às ruas até mesmo para defender a descriminalização do uso de entorpecentes, reconhecendo a legalidade daquilo que ficou conhecido como “Marcha da Maconha”, sob o argumento de que seria livre a expressão do pensamento e o direito de reunião.

Embora pessoalmente discorde com veemência de um ato de liberação indiscriminada das drogas, como a maconha, existem argumentos de pessoas que apontam benefícios no uso da erva. Posso rotular isso como “fake news” só porque minhas fontes dizem exatamente o contrário?

E o aborto? É exercício de direito reprodutivo ou mera condenação à morte do ser humano ainda na gestação? Quem está certo nessa celeuma?

Quando a sociedade está dividida, é natural que surjam posições frontalmente opostas, muitas vezes com bons argumentos para um e para outro lado.

Há temas que guardam, dentro da sua própria discussão, o que o Ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal, chama de “desacordo moral razoável”. Para o Ministro, trata-se de fenômeno que tem lugar diante da ausência de consenso entre posições “racionalmente defensáveis”.

Nesse norte, pensando naquilo que a Constituição Federal propõe como uma sociedade plural e democrática, colocando-se como fundamento da República o pluralismo político (art. 1. V, CF88), não consigo conceber a criação de um ente público “checador de verdades”, que dirá o certo ou errado, para você, leitor, que não consegue ver sozinho.

O art. 25 do PL 2.630/2020 (PL das Fake News), no afã legítimo de controlar a disseminação de notícias falsas na rede, cria o “Conselho de Transparência e Responsabilidade na Internet” e, para sua composição serão nomeados 21 conselheiros, cargos de indicação meramente política. Isso mesmo, as indicações vão variar conforme os ventos políticos de ocasião.

Portanto, não me parece democrático deixar a apreciação da veracidade de um fato ou idéia ao Estado monopolizador do verdadeiro ou falso. Terceiro não pode delimitar o que eu posso ou não considerar verdadeiro.

É sempre perigoso erigir alguém ou algum instituto (um Conselho, talvez) ao patamar de paladino inquestionável da verdade.

Numa democracia, o melhor antídoto contra as “fake news” é a educação de um povo, não a restrição de acesso à informação.

Ademais, políticos mentem desde que o mundo é mundo. As “fake news” não são novidade.

Mas a verdadeira vacina contra a influência das mentiras na internet, reitere-se, é a educação e consciência de um povo, a necessidade de, ele mesmo, checar e buscar a veracidade da informação, ao invés de acreditar em qualquer enganador.

Dessarte, é a concessão de liberdade de obtenção de informação que torna a pessoa criticamente capaz de chegar o mais próximo possível da verdade.

No Brasil, não é raro ver institutos legítimos usados para fins escusos. Deixar esse poder ao Estado é ser demasiado ingênuo e acreditar que um instrumento criado com finalidade legítima nunca será utilizado para finalidade diversa.

E temos outro problema. E se o próprio Estado divulgar informações falsas? Se o próprio Estado divulgar informações tendenciosas, como aquelas que favorecem projetos do governo (seja de Direita ou de Esquerda)?

Para não ir muito longe, relembro aqui uma decisão liminar da 14ª Vara da Justiça Federal do Distrito Federal que, em 2017, durante o Governo Temer, determinou a suspensão imediata da campanha publicitária "Combates aos privilégios" do governo federal sobre a Reforma da Previdência.

O Governo tem seus próprios interesses, muitas vezes, diferente dos nossos.

Já pensou se o Estado tivesse o monopólio de definir o que é verdade ou mentira quanto aos argumentos favoráveis ou contrários à Reforma da Previdência?

Essa é a preocupação que todo cidadão deve ter nesse momento.

Isso não significa que condutas eventualmente danosas fiquem impunes, afinal, na esfera criminal ainda continuam vigentes os crimes contra honra e, no campo cível, o direito à reparação civil decorrente da inafastabilidade de jurisdição.

O que preocupa é quando o Estado quer avocar para si o controle da difusão de informações; o que pode, ou não, ser dito. Isso parece perigoso.

Efetivamente, todos queremos combater as notícias falsas - objetivo legítimo -, mas nos preocupa quando o controle disso vai ficar para o Estado - esse ente abstrato controlado por pessoas bem concretas.

Enfim, lendo o PL 2630, agora tramitando em regime de urgência, aumentam os questionamentos e inquietações, pois, no afã de combater “fake news”, temos de tomar cuidado para não perder a própria voz.