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O que eu achei do novo John Wick

Por Luciano Felizardo 05/04/2023 18h06
Por Luciano Felizardo 05/04/2023 18h06
O que eu achei do novo John Wick
Pôster de John Wick 4: Baba Yaga - Foto: Imagem do Pinterest

Fui ao cinema ver o quarto filme dessa franquia, e eu não podia ter ficado mais feliz. Sim. Comecei o texto assim, e já poderia encerrar por aqui.

É verdade que faz tempo que não apareço com nenhum ensaio, mas esse filme eu não tinha como deixar passar. Foi um filme que me deu vontade de falar sobre, de escrever a respeito.

Em primeiro lugar, a experiência da obra, a degustação do produto, a imersão sensorial, já valem para além de análises. É um longa tão bem feito, tão bem construído, arranjado de uma maneira tão fluida, que se você não tiver costume de parar pra pensar no que está em tela, não vai ser vendo ele que esse costume terá início. O filme é magnético, e lhe faz nem sentir o tempo passar.

Se formos começar essa conversa por esse aspecto, acho que o que tem que ser abordado logo são as coreografias e a linguagem das câmeras.

Talvez você não saiba, mas vai fazer muito sentido quando eu lhe disser que os criadores da franquia são dublês. Sim, eles são, e vem daí o esmero que têm pela ação, e horror que têm por aquelas cenas picotadinhas, empacotadinhas, de lutas tão médias que o espectador quase nem percebe ou nem entende. 

Você nem precisa saber de nada de cinema pra sacar que a ação em John Wick é diferente. É feita com mais cuidado. É bem planejada nos mínimos detalhes, e mostrada sempre de formas novas. Se você entende um pouquinho, vai saber quando aparecer um plano-sequência lindo [eu traduziria isso como "cenas sem cortes"] e vai vibrar com a perfeição da execução. 

A inventividade dos takes é sempre inebriante. Eu nunca tinha visto uma cena como aquela do drift, e percebi até diálogos com outras formas de arte, como o videogame, naquela cena em que a câmera nos dá a visão do local a partir do que seria o teto, como num jogo de tiro 2d, em que você vê algo próximo da "planta" do local onde seu personagem está.

E por falar em videogame, essa não é a única cena em que me pareceu haver uma conversa entre essas mídias. A própria narrativa anda de um jeito muito semelhante a de um jogo. Você precisa ir em certo lugar, derrotar alguns capanguinhas no caminho, chegar lá, brigar com o chefão, e com isso, desbloqueia novos "poderes", novos equipamentos, e consequentemente, novos lugares da trama, pra onde você vai e onde lutará com capanguinhas para no fim enfrentar mais um chefão.

Isso torna a história simples - embora a mitologia da franquia pareça relativamente grande. Fui ao cinema com meu pai e minha sobrinha, e ela não tinha visto os outros filmes. Da entrada do shopping até a entrada do cinema eu expliquei a história toda, e ela entrou na sala entendendo o que se passava em tela. Porém, essa simplicidade não tirou em nada o magnetismo que nos deixou de olhos travados, como quando você está jogando e diz para si mesmo "eu desligo já, só mais cinco minutinhos".

Em um momento do filme, lembrei até de certo tropo de jogos, no qual um companheiro seu vai na frente, atacando de melee, e de sniper, você fica de longe aliviando a sobrecarga dele.

Me pareceu muito também com jogos eletrônicos a forma de lhe causar impacto durante as batidas, pancadas e golpes, usando o som e a vibração, como quando seu joystick treme. Isso afasta aquela sensação que muitos filmes genéricos de ação passam, de que nada ali realmente importa. Muitas das pancadas que o John Wick sente, você quase consegue sentir também.

Mas se é uma análise minha, vocês já imaginam que eu não vou ficar só na camada técnica da obra, né?

Pois é. Eu acabei lendo uns subtextos no filme, e queria compartilhar com vocês, saber se concordam comigo.

Pra começar, eu senti que nesse longa ia ter algo diferente já naquela cena de abertura.
Todos nós já assistimos filmes de faroeste estadunidenses, e sabemos reconhecer quando elementos do gênero são colocados em tela. Aquela abertura é uma típica cena de western, mas com uma diferença: não é um herói hollywoodiano lutando contra indígenas, é um herói hollywoodiano lutando contra árabes. Posso estar equivocado, mas pode ser que isso realmente seja o que parece.

Se você tá lendo meus ensaios, é porque provavelmente concorda com a maioria das opiniões que eu expresso [pelo menos é assim que as pessoas consomem coisas na internet kkkkkk], então deve concordar que o que os estadunidenses impuseram ao indígenas durante a colonização, é o que hoje impõe - em outras proporções - aos árabes, em suas empreitadas neoimperialistas. Matam seus povos, invadem suas terras, levam suas riquezas, e em suas obras, os retratam como gente raivosa, perigosa, sub-civilizada, e ao primeiro indício de uma reação que suba o tom [e não estou aqui justificando nada], apontam o dedo para o povo que eles oprimiram e gritam "tá vendo, que gente violenta, que gente terrorista?"

Essa cena já me deixou de orelha em pé, aguardando o que viria depois, e o que eu vi ser pintado foi simplesmente uma ilustração das relações entre classes sociais, entre explorador e explorado. Acredita? Calma que eu vou desenvolver isso. Se liga:

Esse filme gira em torno de um cara que, na sua área de "trabalho", é um trabalhador de base. Ele é muito bom no que faz, mas não tem subordinado nenhum, pelo contrário, ele está na base da pirâmide de poder. Um dos que estão no topo quer destruí-lo, e John, óbvio, quer escapar disso OU resolver com essa pessoa do topo. E aí é que tá: a disputa é absurdamente desigual. Pra disputar com alguém que tá lá em cima, John tem que lutar contra centenas de pessoas que estão no meio do caminho, pessoas mais próximas a ele nessa hierarquia, tem que lidar com um mercado disputadíssimo, selvagem, voraz. 

O vilão não é melhor que o John em nada, mas pelo prestígio que herdou, tem uma vantagem ENORME nessa disputa. Durante quase 3 horas de filme vemos um John Wick imparável, incontornável, mais habilidoso e mais preparado para cumprir seus objetivos que TODOS a sua volta, e que tenta durante o filme inteiro ter uma chance de lutar de igual para igual com quem está lá em cima, alguém que é protegido por toda uma sistematização social. 

Não me parece à toa que num filme estadunidense, os personagens que representam a parte "de baixo" da hierarquia são, ou não brancos, ou não americanos. No caso do Mr. Nobody isso parece ainda mais escancarado, tanto pelo nome, quanto por representar o que a branquitude faz com corpos negros: ele é tão animalizado por esse sistema, que o único ser que o entende é um cachorro.

Falando nesses personagens, acho que temos que abrir aqui um espacinho para eu dizer o que sempre digo, que é "o Donnie Yen é sempre incrível". Sério. Não tenho uma única crítica a fazer, só elogios. Eu não assisti um personagem dele que não gostasse. Embora... acho que já é o terceiro asiático-cego-mistíco-mestre-hiperhabilidoso que eu o vejo fazendo. Talvez seja orientalismo? Talvez, mas nesse quesito meu pouco conhecimento me diz que essa minha ignorância é desculpa pra minha passada de pano. De verdade. Não sei debater sobre isso, e sobre coisas que eu não sei, eu prefiro não falar.

Mas se eu for falar de coisas que eu sei e que tenho estudado recentemente, a famigerada cena da escada me pegou demais.

Primeiramente porque não me pareceu aleatório que ela tenha sido na França, e que sempre que chegavam ao topo, os personagens caíam. Isso me lembrou muito o Mito do Sísifo, de Camus, no qual ele também faz um paralelo interessante com o mundo do trabalho. [Vamos deixar isso pela metade, porque eu tenho um texto sobre Camus guardadinho, e que em breve eu solto por aqui]. Porém, mais do que à Albert Camus, a cena me remeteu justamente a essa disputa desigual entre classes. John precisava subir aquilo tudo, derrubando todos pelo caminho, pra enfrentar um herdeiro descansado, que o esperava comodamente lá em cima.

Eu acho de verdade que os criadores falavam sobre isso com essas cenas. Um elemento que me faz pensar nisso, é a forma como eles criticam o status quo dessa sociedade do direito burguês. Você viu isso?

Em dado momento a câmera faz questão de se demorar em vários quadros que retratam violência, revoltas, tumultos e afins, e logo em seguida o texto nos diz que o que separa a civilização da barbárie são as leis. Porém, essas mesmas leis são ineficientes em evitar toda a matança que o filme nos mostra, toda a desgraça que nós acompanhamos naquela história. É ineficiente até mesmo em igualar as coisas, já que é dentro das mesmas leis que o tal do herdeiro se mantém protegido da luta contra o John.

Nós sabemos que o direito que nós temos é o direito burguês. Que o maior protegido pelas leis são os detentores de propriedade privada. Sabemos inclusive a cor e a classe social da maioria das pessoas presas por essa mesma lei. E não, não estou defendendo aqui o fim da "justiça", só proponho uma reflexão sobre qual é essa "justiça", e sob qual ótica ela foi construída.

Além disso, temos no protagonista um personagem que só encontrou fora da lei a possibilidade de desenvolver suas capacidades. Não a de matar, falo de suas potencialidades no geral. Fora da lei, John Wick usa sua esperteza, inteligência, coragem, tudo isso pra "subir na vida", e quando tenta deixar de lado esse passado, o mundo à sua volta dá um jeito de jogá-lo de volta em sua cara. Me lembra O Homem na Estrada, dos Racionais - "te chamarão pra sempre de ex-presidiário."

Tendo agora lido esses argumentos, você tem algumas opções do que fazer com eles. Pode deslegitimá-los me chamando de esquerdistinha safado, ou pode refletir sobre eles, e sobre como as coisas são menos simples do que parecem, como nosso mundo é violento e desigual em nuances que às vezes nós nem percebemos, e que, de uma forma ou de outra, nossas expressões culturais sempre trarão isso consigo.

Luciano Felizardo

Luciano é escritor e sua cabeça gira em torno disso. Nesse espaço, vai falar sobre obras de arte (filmes, livros, músicas, etc) e as reflexões que teve a partir delas. Além de, vez e outra, tentar simplificar e trazer para o nosso cotidiano alguns conceitos de filosofia, política e psicologia - área na qual vem se graduando pela Ufal.
Suas obras podem ser adquiridas no site da Editora Ipê Amarelo ou entrando em contato com ele através do Instagram (@vezeoutrapoesia).

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