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John Constantine e a magia de nunca crescer

Por Luciano Felizardo 06/02/2023 20h08
Por Luciano Felizardo 06/02/2023 20h08
John Constantine e a magia de nunca crescer
John Constantine, criado por Alan Moore - Foto: Imagem do Pinterest

Um personagem que ultimamente vem ganhando bastante notoriedade no universo de animações da DC é o John Constantine, e posso dizer que sua série de hqs - publicada originalmente pela Vertigo -, Hellblazer, é uma das coisas que mais tenho lido ultimamente.

{Inclusive, acredito piamente que aquela versão dos desenhos não combina com o personagem, e que ele está todo deslocado ali. Se quiserem, posso fazer um texto só sobre isso.}

Esse quadrinho foi a publicação mais longeva do selo, e ao longo dos anos - e das mais de 300 edições - vários roteiristas puderam dar suas contribuições à história do personagem.

É quase unanimidade entre os fãs que a melhor fase é o período escrito pelo Garth Ennis (criador de The Boys), e é o que eu mais tenho lido. É nele que a mitologia do personagem - criada pelo Alan Moore e expandindo pelo Jamie Delano - é abordada do jeito mais marcante, do jeito mais Constantine de ser.

Nessa fase - e durante quase toda a história do personagem - magia é quase uma segunda ou terceira coisa. O foco é nas situações horríveis que John se mete, na sua malandragem pra sair delas, em seus ciclos viciosos, nas suas relações frustradas e frustrantes, etc.

Eu estou incluso nessa massa de fãs que têm o período Ennis como o preferido.

O último encadernado que li, porém, foi "O coração do Menino Morto" [volume 7 da fase Origens pela Panini], com roteiros do Delano, e o que me prendeu foi o conto que dá nome ao volume, que é o conto de abertura.

Nessa primeira história é mostrada uma mini-aventura do pequeno John, do Constantine ainda criança, porém, mais do que isso, me parece que aqui é instituída uma visão do personagem diferente - ou que vai além - da do Ennis, e que mesmo não sendo nova (o gibi é de meados de 90???), ainda não era do meu conhecimento: Delano nos mostra um John que se formou como consequência de toda uma rede precária de afetos.

Ele aqui já dá os lampejos de um mago malandro, sim, mas esses lampejos vêm pelo fato de não conseguir sair do seu papel de uma criança machucada.

{Sem querer entregar a história toda, eu vou tentar só dar uma pincelada nos tópicos necessários:}

Em O Coração do Menino Morto vemos um Johnny sem a mãe, sem o pai - que está preso -, adotado pelos tios, cujo tio é um homem autoritário e violento e a tia quase não demonstra qualquer tipo carinho, vizinhos que o desprezam e o têm como alvo de bullying e uma irmã que, embora seja sua única companhia não-violenta, não se mostra como alguém confiável para o menino.

Já temos aqui alguns dos sentimentos que viriam a povoar fixamente sua cabeça, como a culpa - já que sua mãe morreu no parto - e a sensação de ser sempre um outsider - é interessante notar que, nessa história, John está na Inglaterra e se fantasia de indígena norte americano, ou seja, uma população excluída da sociedade estadunidense, que já é, por sua vez, excluída dos ideais britânicos de 'civilidade'.

É no desenrolar dessa historinha que Constantine encontra um coração morto e petrificado dentro de uma caixa torácica dum cadáver, e atribuindo poderes mágicos ao item, guarda consigo para sua própria proteção, como sendo um amuleto. Foi isso que me pegou.

John, ao longo do conto, usa o coração pra se defender de agressões, usa pra atacar seus "inimigos", usa como objeto de interesse e observação quando precisa se distrair e o usa como companhia e consolo quando o medo e a culpa vêm à sua mente.

Ele utiliza esse pensamento mágico como fuga pra tudo que há de ruim, e até os poucos momentos bons que tem na história, são relativos a essa magia.

Me parece que aqui, um embrionário mago surge como escudo e como escape.

E não é que a magia ou pensamentos mágicos por si só configurem algo necessário prejudicial, mas nós sabemos como a vida de Constantine vai ser.

Quando lemos mais sobre sua trajetória, vemos que ela foi repleta de dor e sofrimento, mas aí é que vem a questão: depois de um tempo, foi a própria magia que fez John sofrer.

Nós sabemos que uma relação com o mundo, quando adulta e madura, se constitui por um posicionamento franco e responsável frente à vida. Nem de medo, assombro e desilusão, nem de devaneio puro, hiper-excitação e esperanças desmedidas.

E aí é que tá: parece que o Constantine se manteve longe desse tipo de relação. Ele envelheceu, mas não amadureceu, e continuou usando sua magia de criança pra suportar a dor. 

Isso o ajudou até certo ponto. Ora, ele sobreviveu, fez amigos, viveu romances. Mas quando precisou de uma postura adulta e responsável, tudo que tinha pra oferecer era magia, e por não saber balancear esse seu mundo com o mundo "real", foi perdendo muito do que lhe era precioso.

Um exemplo disso é seu caso de Newcastle. 

Um dos episódios que mais atormentam a mente de Constantine acontece graças à sua autoimagem distorcida e quase desonesta, e por não conhecer a si mesmo nem os próprios limites, John prejudica várias pessoas num ato impensado e irresponsável.

Essa nem é uma reflexão muito profunda, né? Qualquer pessoa, lendo com razoável atenção, pode perceber isso. Difícil é trazer isso pra si. Sabe?

É importante termos nossa "magia" de fuga, mas também o é saber se posicionar com firmeza e responsabilidade quando necessário. Se só tivermos magia, o mundo real se torna um verdadeiro horror, como viria a se tornar, no futuro, o mundo de John Constantine. Cresçamos, pois.

Luciano Felizardo

Luciano é escritor e sua cabeça gira em torno disso. Nesse espaço, vai falar sobre obras de arte (filmes, livros, músicas, etc) e as reflexões que teve a partir delas. Além de, vez e outra, tentar simplificar e trazer para o nosso cotidiano alguns conceitos de filosofia, política e psicologia - área na qual vem se graduando pela Ufal.
Suas obras podem ser adquiridas no site da Editora Ipê Amarelo ou entrando em contato com ele através do Instagram (@vezeoutrapoesia).

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