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Caleidoscópio é isso tudo mesmo?

Por Luciano Felizardo 23/01/2023 19h07
Por Luciano Felizardo 23/01/2023 19h07
Caleidoscópio é isso tudo mesmo?
Pôster de Caleidoscópio, série da Netflix - Foto: Imagem do Pinterest

Caleidoscópio é uma série divertida. E é isso. Para por aí kkkkkkk


Sei que muita gente não quer nada além disso. Pra mim, inclusive, foi o bastante. Uma série legal pra entreter. Vi quase que de uma vez só.

Mas se você esperar mais do que um bom passatempo... bom, não espere.

Sei que é uma série que promete muito, mas talvez tenha prometido demais. E por que? Vou te explicar.

A divulgação da Netflix se baseou em "os episódios podem ser vistos em qualquer sequência", e eu sinto muito, mas acho que não. Quer dizer, a maioria sim, mas se eu não tivesse visto o "Branco" por último, minha experiência teria sido medíocre ou menos que isso.

Meio que todo o "Plot Twist" e a revelação que muda sua percepção de todas as coisas estão nele.

Os outros episódios são, basicamente, flashbacks e flashfowards, que podiam ter sido montados pelo editor sem problemas em episódios que seguissem uma ordem cronológica. Ele só "lhe dá" a oportunidade de montar no lugar dele, ou quase isso.

Pra uma série que prometia uma novidade, ficamos na promessa. E é verdade que eu nunca assisti algo nessa proposta, mas não posso dizer que é uma proposta nova. Temos na literatura o conhecidíssimo Jogo da Amarelinha, do Cortázar, temos Ítalo Calvino que também já brincou com isso, temos toda uma tradição de livros-jogos que se utilizam de "escolha para qual página você vai a partir disso" e etc. Uma série que tivesse isso como ponto de partida eu nunca vi, mas mudar a ordem em que as coisas são mostradas é algo tão usado que não passa do comum - Nolan que o diga kk.

Sem contar que a lógica de "faça sua ordem" se aplica facilmente a qualquer sitcom que acompanha os personagens por muito tempo. Você pode vê-los envelhecendo em ordem cronológica, ou não. Nada vai ser de fato um spoiler.

Mas usando esse artifício, a obra acerta num quesito, e me deixe desenvolvê-lo.

A última série grande no subgênero de roubo (ou Heist) que tivemos foi "La Casa de Papel", e era uma narrativa na qual não havia tanto espaço para o imprevisto. Pelo menos durante boa parte dela. Quando a situação estava sob controle e a série poderia explorar o problema nos assustando pra depois se utilizar do nosso alívio, ela simplesmente colocava o professor dizendo "É AÍ QUE ENTRA O PLANO TAL TAL TAL", e nós já sabíamos que ia correr tudo bem. Quando as coisas saiam da rota também era algo predito, já que o professor não tinha aparecido falando qual era o plano do momento num flashback anticlimático.

O fato de cada episódio de caleidoscópio ser sobre um recorte específico de tempo evita esse tipo de artifício, já que, se não houve explicação naquele momento, ficamos curiosos pra descobrir como a coisa se deu, no passado ou no futuro, e pulando de um episódio pra outro, vamos explorando todos os recantos das causas e consequências.

Uma coisa na qual eu senti falta de certo esmero foi na escrita dos personagens. Eu não sei vocês, mas eu não consegui empatizar com a maioria deles. Achei o RJ fofinho, torci pro protagonista e gostei da Ava, de resto...

Acho até que "Pink", episódio focado no Bob, é um dos melhores - se não o melhor - mas sinto que só gostei tanto porque foi o primeiro que vi. Se antes eu tivesse conhecido o Bob dos outros episódios, teria pouco me lixado pra jornada dele pós-roubo. Acho, aliás, que é problemático o quanto a série nos fez odiar a Judy, e talvez caiba um debate à parte aqui.

Outra coisa que me pareceu mal feita foi o debate social/racial da série. A gente percebe que eles tinham até boa intenção, mas faltou muito cuidado.

Vamos lá: a discussão se baseia em mostrar que um homem negro que comete o mesmo erro que um homem branco sofre muito mais com as consequências, e que o roubo que a gente vê e que nos incomoda normalmente é o do pobre roubando algo do abastado, mas nunca do rico que rouba descaradamente.

Eles metem até esse mistério com o passado de um dos brancos burgueses, e que nem é necessário, porque se você conhece o conceito de "mais-valia" o roubo tá lá na sua cara o tempo inteiro. 

A série inclusive mostra como todos os negros que estão ali - quase sempre como figurantes - aparecem exercendo ou para exercer trabalhos subalternos. Mas é sério que a melhor maneira de fazer isso é colocar um homem negro, totalmente plano, unidimensional, cujo único talento é roubar? O único protagonista negro é esse? O cara só pensa em roubo, só fala de roubo, só gosta de roubo, só faz isso da vida. A esposa do cara, que também é negra, sabe e "ah, ok". A filha dele, que também é negra, parece não saber, cresce 'longe da influência do pai', e quando menos se espera tá aprontando também. 

Os negros da obra ou são subalternos ou são criminosos. E certo, faz algum sentido no contexto da crítica, mas essa é a única forma de combater esse sistema de estratificação social rígida? 

Não se debate sobre o sistema em si e sobre como explorar funcionários é em si um roubo, só sobre o que está na lei e o que não está.

Toda a argumentação é baseada nas consequências do roubo por diferenças étnicas, mas nunca se volta para o que é o gerador da criminalidade nem para o porquê de expormos tanto nossos corpos pretos a situações tão violentas. 

O que dá a entender ali é que ele só rouba porque quer, porque gosta, e que além disso, se sente confortável. Diz que vai parar pela família, mas isso não carrega peso emocional nenhum. Não convence ninguém.
O artifício usado para evitar que nós achemos que a série ratifica o que diz criticar é falar em voz alta o que nós já percebemos. "Isso é porque eu sou um homem negro, pipipi popopó", o que acaba soando bobo, porque já está óbvio há tempo, mas o debate não sai disso, é raso.

Nossa, parece que eu odiei a série, né? 

Na verdade eu gostei. É divertidinha. Só não dá pra assistir esperando inovação, muito menos substância ou coerência no debate proposto. Fora isso, é legal. 

Eu ainda pretendo tirar um dia de tédio pra reassistir, dessa vez na ordem que a Netflix sugere, mas se ficar melhor do que a primeira ordem que eu escolhi [rosa, vermelho, laranja, amarelo, verde, azul, violeta e branco] eu vou ficar muito irritado, viu? kkkk

Luciano Felizardo

Luciano é escritor e sua cabeça gira em torno disso. Nesse espaço, vai falar sobre obras de arte (filmes, livros, músicas, etc) e as reflexões que teve a partir delas. Além de, vez e outra, tentar simplificar e trazer para o nosso cotidiano alguns conceitos de filosofia, política e psicologia - área na qual vem se graduando pela Ufal.
Suas obras podem ser adquiridas no site da Editora Ipê Amarelo ou entrando em contato com ele através do Instagram (@vezeoutrapoesia).

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