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Começando em Pinóquio, terminando na polêmica do louvor racista

Por Luciano Felizardo 22/12/2022 19h07
Por Luciano Felizardo 22/12/2022 19h07
Começando em Pinóquio, terminando na polêmica do louvor racista
Pinóquio, de Mark Gustafson e del Toro - Foto: Imagem do Pinterest

Quando eu soube que a Netflix tinha lançado - mais - uma versão de Pinóquio, de primeira fiquei indiferente, mas quando soube que o diretor seria o Guilhermo Del Toro, me deu vontade de ver.

Primeiro porque essa direção me parecia casar perfeitamente com o tipo de história. Eu imagino que não seja só eu que acho isso, mas pra mim, essas fábulas infantis são quase sempre sinistras. Assustadoras mesmo. 

Imagine que você não cresceu ouvindo elas e que elas não estão normalizadas na sua cabeça. Agora imagine que estão as contando pra você pela primeira vez.
Chapeuzinho vermelho é meio que sobre estupro, em Branca de Neve rola necrofilia, em João e Maria tem canibalismo, e por aí vai.

Porém, me parece que esse fator, essa questão de terem nos contado tanto essas histórias que elas já nos parecem banais, é em si uma faca de dois gumes. Pode fazer com que sejamos indiferentes a mais uma versão de Pinóquio, mas pode nos prender a atenção se a releitura dessa história é interessante, já que lhe faz ver por outro ângulo personagens que já estão mais do que estabelecidos na sua mente.

Foi o que aconteceu comigo. Eu já vi e ouvi várias versões de Pinóquio, mas nenhuma me foi contada dessa forma.

Pinóquio é uma historinha que já circula há mais de um século, e nas minhas duas décadas de leitor, lembro que normalmente as histórias eram sobre ele tentar ser aceito.
Socialmente, pelo que me lembro. Ele queria ser um "menino de verdade". Queria ser um, e principalmente, ser considerado um.

No filme do del Toro e de Mark Gustafson, o objetivo do personagem parece ser outro. Ele se incomoda com a discriminação que sofre, mas reage a ela muito mais com revolta do que com tristeza. Seu desejo, na verdade, é ser aceito pelo pai. Ele quer que o pai o ame. É uma narrativa sobre família, e isso, se bem utilizado, é facilmente comovente. Eu, em particular, me comovi.

Achei a relação dele com o Geppetto bem escrita, e a relação dele com ele mesmo muito interessante. Vez ou outra Pinóquio parece querer mudar para ser amado, mas isso logo passa e ele volta a se perguntar o porquê de não ser amado do jeito que é.

Inclusive, tem um momento em que ele está numa igreja com o pai, e apontando pruma escultura de Jesus, pergunta ao Geppetto: ele também é de madeira, então por que amam a ele e a mim não?

Achou forçado o paralelo com Jesus? Então talvez você fique incomodadx em perceber que esse não foi o único. O paralelo é estabelecido - e pra mim, muito bem estabelecido - durante praticamente toda a obra.

O Pinóquio desse longa é filho adotivo de um carpinteiro e foi concebido por espíritos. É um menino diferente, e por isso as autoridades locais têm medo dele, e como fizeram com Jesus, dizem que ele é um enviado do demônio.

Em um dos encontros com o vilão, Pinóquio estava indo cumprir as ordens de seu pai [que o mandou ir à escola - leia-se: ir a um lugar adquirir conhecimento/sabedoria] e encontra com o vilão em meio à caminhada. Nesse encontro, o vilão oferece comida mais do que suficiente para matar sua fome e reinos prostrados a seus pés. 

Se você leu a bíblia você está pegando todas essas referências.

Se você não leu ou se acha que eu estou exagerando, o filme faz questão de deixar isso óbvio: em dado momento Pinóquio é pendurado numa cruz pra morrer - e nesse momento nós já conhecemos seu poder de morrer e ressuscitar.

"Tá, Luciano, mas e esse monte de paralelo é pra quê? Fizeram de graça?"

No meu ponto de vista, é uma crítica ferrenha à má interpretação do cristianismo.

O filme se passa durante o regime fascista de Benito Mussolini - pra que não restem dúvidas e pra que ninguém tenha como dizer que não é sobre regimes autoritários ou pensamentos fascistóides. A primeira contradição entre o discurso cristão e a atitude das pessoas está aí. Há uma exaltação contínua do nome de Jesus, mas nós sabemos o que os italianos faziam nesse tempo.

Aliás, Hitler, parceirão do Mussolini, era católico, e boa parte das atrocidades cometidas por esses dois foi em nome de suas crenças, usando o nome do deus que acreditavam. [E já tem texto aqui falando mais ou menos isso. Vai lá no ensaio sobre "Nada de Novo no Front".] Outra contradição pode ser vista aí, já que Jesus era judeu, grupo alvo do ódio dos nazistas. 

[Fico pensando que o filme também pode aludir a isso, já que uma das características mais odiadas e usadas como alvo de zombaria pelos alemães da época era os narizes grandes dos judeus.]

Quando os fascistas descobrem os "poderes" de Pinóquio, querem de imediato fazer dele uma arma, querem treiná-lo e mandá-lo pra guerra. Era o que muita gente esperava de Jesus, né? Graças à profecia de que o Messias seria "filho de Davi" [que era um assassino habilidoso e feroz], muitos esperaram que Jesus fosse guiar seu povo numa revolução contra Roma - inclusive, um de seus discípulos era um zelote.

É um equívoco que não ficou no passado, nem morreu com os regimes autoritários de Alemanha e Itália. Basta ver ao seu redor quanto "cristão" armamentista existe, quanto "cristão" favorável a um Estado violento anda por aí dizendo que "bandido bom é bandido morto" - e sim, me parece EXTREMAMENTE incoerente que alguém que tenha lido, entendido e que acredite nos quatro evangelhos tenha essas convicções na cabeça e/ou se auto-entitule orgulhosamente como "conservador".

No filme, o carinho que Pinóquio desperta em quem convive com ele acaba sendo mais forte e essas convicções perversas são deixadas de lado quando as pessoas as percebem. Nos dias de hoje, porém, parece que pouca gente percebeu. Basta ver quanta igreja fez campanha pra o candidato a presidente que construiu sua imagem com discursos violentos e, por vezes, desumanos, como quando pôs um torturador como herói nacional - nunca é demais lembrar que o deus cristão morreu torturado.

Minha esperança é de que, percebendo, essas mesmas pessoas tenham a mudança que tiveram os personagens em Pinóquio. Minha esperança, porém, parece ser mais uma ilusão. 

Vejamos como exemplo a última polêmica entre as religiões de matriz cristã.

Vem acontecendo um debate sobre a música "Alvo mais que a neve", um louvor que, pra ser eufemista, é bem de mau gosto. A letra diz que quem encontra Jesus fica mais branco que a neve. 

O pastor Kléber Lucas, que foi quem levantou essa discussão, em vez de ser ouvido e de ter sua colocação sendo levada em conta, foi vítima de vários e vários ataques raivosos na internet. Sim, ele é um pastor negro, e essa questão por ele levantada não é baseada em achismo, é o objeto de estudo e pesquisa acadêmica de seu mestrado. Porém, para reiterar o próprio racismo, a maioria dos religiosos que se posicionaram fizeram questão de, primeiro, pôr em dúvida a capacidade intelectual do pastor, como se todo seu currículo não fosse nada, e a música, por se tratar de uma peça 'sagrada', não pudesse sequer ser questionada.

Esse rolê vai muito mais além, a gente sabe. Não é só essa música.

A história da Igreja é RECHEADÍSSIMA de violência étnica. Ou não? O que os jesuítas fizeram com os indígenas, a demonização das crenças de matriz africana, a própria conivência com a escravidão, as cruzadas e etc. 

Isso fica mais do que claro na imagem distorcida e naturalizada no imaginário dos fiéis de um Jesus branco e loiro. Se você leu a bíblia, sabe que Jesus passou boa parte da vida escondido no Egito. Agora imagine a cor da pele dele, pra que ele conseguisse passar despercebido entre os egípcios.

Enfim... é muita coisa, e a maioria você já sabe.

É verdade também que a Igreja de hoje não é a mesma das épocas citadas, mas é produto dela, e é triste constatar que a reflexão sobre os próprios erros está passando longe dos debates principais entre essas religiões - que são as predominantes no nosso país, e para o bem ou para o mal, acabam formando o pensamento de muita gente. 

Se um pastor que ousa questionar UMA MÚSICA é tratado como está sendo o Kléber Lucas, então sim, minha esperança não é muito mais do que uma ilusão.

Luciano Felizardo

Luciano é escritor e sua cabeça gira em torno disso. Nesse espaço, vai falar sobre obras de arte (filmes, livros, músicas, etc) e as reflexões que teve a partir delas. Além de, vez e outra, tentar simplificar e trazer para o nosso cotidiano alguns conceitos de filosofia, política e psicologia - área na qual vem se graduando pela Ufal.
Suas obras podem ser adquiridas no site da Editora Ipê Amarelo ou entrando em contato com ele através do Instagram (@vezeoutrapoesia).

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