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Mike, além do diagnóstico

Por Luciano Felizardo 12/12/2022 21h09
Por Luciano Felizardo 12/12/2022 21h09
Mike, além do diagnóstico
Imagem de "Mike, além do Tyson", série da Star+ - Foto: Imagem do Pinterest

Dia 15 de setembro a Star+ disponibilizou o último episódio da primeira temporada de "Mike, além do Tyson", que eu terminei de assistir no começo de outubro.

A série, como o nome deixa óbvio, narra para nós a vida de Mike Tyson, lutador absurdamente famoso que eu não preciso nem apresentar, você conhece, nem que seja o nome.

Sobre a obra vou acabar nem falando tanto, mas é muito boa. Isso até o episódio da Desirée. Depois dele o ritmo da narrativa cai muito e parece que os roteiristas se perderam total. Mas até ali, é muito boa.
O que me chamou mesmo a atenção - provavelmente pela minha condição de estudante de psicologia - foi a questão do diagnóstico.

Mike, quando criança, era quieto, calado, vivia numa vida triste e tudo ao seu redor era complicado. As condições às quais ele estava exposto não contribuíam para que ele explorasse plenamente suas capacidades de desenvolvimento. Vendo o quanto ele parecia "atrasado", sua mãe o leva ao médico, que o dá o diagnóstico de "retardado".

Isso parece um ponto fundamental na vida do personagem, principalmente no tocante à sua relação com a mãe. Segundo o Mike da série nos conta, foi ali que sua mãe perdeu a fé nele, "foi ali que eu vi todos os sonhos que ela tinha pra mim caírem por terra". A mãe do Mike morreu antes de ver o filho "fazer sucesso", antes que ele se tornasse a lenda que se tornou, e mesmo vendo todo o esforço do filho, morreu duvidando de suas capacidades, porque não se podia esperar nada de um "retardado".

Há algumas coisas podemos pensar a partir disso.

Uma delas é quanto ao diagnóstico em si. Fechar um diagnóstico é algo que vai além de juntar uma série de sintomas e achar uma categoria para enquadrá-los. O que importa de verdade é como esses sintomas se fazem presentes na vida do sujeito, como ele se relaciona com eles, e quais são as consequências disso. 

Se eu puder citar a mim mesmo como exemplo, eu tenho TDAH, assim como outras pessoas da minha família. Fui diagnosticado depois de adulto, e elas também. Entretanto, os sintomas desse transtorno nunca me atrapalharam, diferente de meus familiares, que por vezes se sentem muito incomodados pelo efeito da condição em seu dia-a-dia.

E ainda quanto ao diagnóstico: sintomas dados num vácuo, fora de um contexto, tendem a levar-nos ao erro. O Mike, por exemplo, talvez fosse só uma criança assustada, que tentava apenas se fazer passar despercebido. E por que? Porque presenciava cenas de violência doméstica, porque não tinha uma estrutura educacional adequada, porque andar nas ruas do bairro onde morava era sempre um perigo, porque sofria bullying, porque sua mãe não tinha como dar suporte emocional a ele e etc. Dizer "é retardo" é muito mais simples, mas desconsidera todo o resto da vida do sujeito, como se todo seu entorno não tivesse importância.

A outra coisa que isso me faz pensar é no cuidado que se deve ter ao dar e receber um diagnóstico. 

[O caso dele me lembrou um livro que li há pouco tempo na faculdade - "Dibs, em busca de si mesmo" - que narra o acompanhamento psicológico de uma criança superdotada intelectualmente, porém, com uma pobreza quase absoluta em sua vida afetiva. Isso a levava a um ensimesmamento extremo, e seus pais cogitavam que o menino tivesse "retardo". É uma leitura fluida, fácil e importante. Recomendo.] 

Há esses casos em que é mais negativo que positivo dizer ao paciente/cliente em qual dessas categorias ele se encaixa. Claro, é possivel pensar que diagnosticando um problema, é possível procurar tratamentos para ele. Se você sabe que está gripado, toma um Benegripe. A questão é que com problemas de cunho psiquiátrico/psicológico existe um estigma que não existe em outras doenças. Um pré-conceito, uma ignorância geral, que pode ser paralisante, tanto no meio social, quanto no mundo intrapessoal. O diagnosticado pode não saber lidar com o diagnóstico, se dado de forma irresponsável, crua ou sem propósito. É preciso que a própria ideia de apresentar um sintoma ou um transtorno seja trabalhada e ressignificada pelo sujeito e seus entes mais próximos. 

Um exemplo pra isso pode ser o de pais que choram ao descobrir que seu filho é autista. É importante que eles o saibam, porque assim vão poder ajudá-lo. Mas o autismo, a priori, não é um problema. Sabemos que a sociedade em que vivemos é capacitista [e talvez caiba um texto todo dedicado a isso], sabemos que vai ser mais difícil a adaptação a alguns ambientes e tal e tal, mas o diagnóstico não pode ser um fator limitante pra o indivíduo, não deve servir como uma barreira para o seu desenvolvimento. 

Se as consequências de uma patologia percebida forem limitantes, lidaremos com elas, mas que o limite não seja o do estigma. Vejamos, nesse exemplo, casos conhecidos, tanto do cotidiano quanto entre celebridades, de pessoas autistas que se realizam nos mais diversos âmbitos.

Em conclusão, fica minha indicação da série e meu pedido, aos médicos e psicólogos, que não tornem o diagnóstico um fardo a mais, e aos diagnosticados que não deixem o estigma os limitar.

Mike Tyson, o retardado, conquistou tudo o que conquistou, mesmo que ninguém acreditasse.

Luciano Felizardo

Luciano é escritor e sua cabeça gira em torno disso. Nesse espaço, vai falar sobre obras de arte (filmes, livros, músicas, etc) e as reflexões que teve a partir delas. Além de, vez e outra, tentar simplificar e trazer para o nosso cotidiano alguns conceitos de filosofia, política e psicologia - área na qual vem se graduando pela Ufal.
Suas obras podem ser adquiridas no site da Editora Ipê Amarelo ou entrando em contato com ele através do Instagram (@vezeoutrapoesia).

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