Blogs

Fui assistir Wakanda e...

Por Luciano Felizardo 17/11/2022 19h07
Por Luciano Felizardo 17/11/2022 19h07
Fui assistir Wakanda e...
Cena do filme Wakanda Forever, da Marvel Studios - Foto: Imagem do Pinterest

Confesso que até os 45 do segundo tempo eu estava totalmente sem hype pra ver o filme, mas é aquela história que eu já contei: tem um rolê de família envolvido. 

Tava tudo mundo empolgado, e depois de receber uma informação ou outra sobre o filme [vulgo spoiler] acabei querendo saber como seria a execução disso.

Acabou que eu gostei. Sério. 

Pra começar, a homenagem que fizeram ao Chad foi muito bonita. Vi várias pessoas ao meu redor chorando, e dessa vez eu entendia o porquê. 

A morte do Chadwick Boseman, diferente da maioria das mortes de celebridades - nas quais a comoção coletiva sempre me parece exagerada - foi uma morte que eu senti de fato. Fiquei triste de verdade. Escrevi poema a respeito e tudo mais.

Para além dos problemas de uma ideologia reformista que eu senti no Pantera Negra (2018), ainda era lindo pra mim ver um protagonista - um SUPER-HERÓI - negro em tela. Um personagem com raízes africanas passando longe da maioria dos estereótipos que vemos normalmente no audiovisual - que é criminalidade, uso e abuso de drogas, falta de escolaridade e tudo o mais. 

Como quase todo mundo, fui pego de surpresa pelo anúncio da morte dele, e depois disso, demorei alguns meses pra conseguir assistir alguma obra em que ele estivesse.

Tendo isso vista, é de se imaginar o quanto eu fiquei tocado pelas cenas do velório e a abertura, em que imagens dele no MCU vão passando acompanhadas de um respeitoso e doloroso silêncio.

Talvez por isso, por me ganhar emocionalmente logo no começo, eu consegui embarcar na proposta do filme. Pelo menos na primeira metade. Fiquei genuinamente comovido e me deixei conduzir pela trama, que segue bem, até chegar no seu terço final e se tornar um filminho clássico de herói.

Mas ora, é um filme da Marvel, o que mais eu esperava?

É por isso que eu acho que nem adianta eu falar muito mais coisa sobre isso. Você já sabe mais ou menos o que tem que esperar. O que eu gostaria de atentar, é pra outra questão.

Lembra do que eu escrevi ali em cima, sobre ver um super-herói negro e me emocionar? Pois é. Acho que a gente tem que ir com calma.

Tenho visto ultimamente muita gente, das mais diversas localizações no espectro político e ideológico, pintando a Disney como uma empresa... "progressista", eu acho. E é aí que a gente tem que andar com muito cuidado.

Acho que é sempre bom a gente ter em mente que empresas - principalmente as grandes -, via de regra, não têm lado. Não existe megacorporação progressista. As empresas estão sempre do lado do lucro.

Eu não preciso ir muito longe pra mostrar como a "mensagem" política da Disney tem sido bem vaga. Pegue Falcão e o Soldado Invernal como exemplo. Finalmente temos um Capitão América negro no MCU, mas é um cara super reformista, nacionalista, chauvinista, que combate "revolucionários" que o estúdio pintou como vilões através dos assassinatos que eles cometem ao longo da obra, na qual curiosamente, o próprio Capitão América vai matando os inimigos desde o primeiro episódio.

Se quiser voltar mais, vai e procura os desenhos com forte teor racista que a empresa produziu no século passado.

E você pode contra-argumentar com, "mas Luciano, você não viu que essa mesma empresa fez uma grande propagando Anti-nazista durante a segunda guerra?", Ótimo, mas onde estavam esses publicitários quando milhões de jovens negros eram enviados para morrer lutando - sem nem mesmo entender bem o porquê - contra vietnamitas?

Mas isso tudo tá indo muito longe. Eu sei. Nos atentemos a Wakanda.

"Com Wakanda você tem questões?" Pois é. Acaba que eu tenho. E para além do discurso difuso, tiro de 12 - que vai pra todo lado e não acerta lugar nenhum - do primeiro filme, aqui nós temos um rolê parecido. 

Analisando num contexto mais amplo, o filme parece apontar pra uma lição de moral do tipo "povos historicamente oprimidos, vocês precisam se unir contra os reais opressores", mas não é nem um pouco incisivo nisso, dando até mesmo pano pra manga pra galera que acredita naquele terraplanismo social que é o tal do "racismo reverso". 

Temos no longa o povo do Namor, que são os nativos das colônias espanholas, e que parecem ter um início de uma consciência decolonial, mas que descamba descaradamente num ódio a tudo e a todos - como se fossem coisas intrinsecamente ligadas. Vão tentando pôr em prática um plano de "morte a todos que não são da nossa raça" e têm um líder cujo nome é quase Ku Klux Klan - e eu sei ao que se remete, mas não se pode esperar que todo mundo saiba, ainda mais se nem todo mundo estiver bem intencionado. 

E a conclusão disso ainda parece ir pra um "tá vendo, como esse povo na verdade não era mau, era só um povo ferido?" mas nos mostra mais uma vez um não-branco arquitetando planos malignos contra os neoimperialistas - aqui supostamente inocentes e indefesos. 

Já deu pra entender que o foco não é a responsabilidade com o debate social, né? Se fosse, talvez nem tivéssemos a Letitia como nova cara do super-herói preto, já que diferente do Chadwick, ela parece se posicionar de forma muito esquisita sobre algumas questões, como por exemplo, a vacina [sim, quem interpreta a Shuri é antivac].

Ou não haveria também aquela tentativa, com a Riri, de vender a ideia meritocrática de que "qualquer um pode ser um Homem-de-ferro, basta ter inteligência e vontade". Sabe o Elon Musk, o cara que na internet se convencionou - burramente - chamar de "Tony Stark" da vida real? Vai procurar de onde veio os recursos que ele usa hoje em dia. Vai procurar de onde veio a herança dele kkkkkkkk

E se o foco não é esse, qual é?

Bom... Não é difícil deduzir. Agora a Disney tem uma massa nova de consumidores ávidos {EU, inclusive, comprei bonequinho}, e vai se utilizar até mesmo da recepção furiosa dos racistas pra se promover, ou vocês acham que a empresa não sabia a polêmica que ia gerar quando escalaram uma atriz negra pra interpretar a pequena sereia? Ou vocês acham que a empresa não contava com isso? Com nós negros saindo em defesa da atriz e indo assistir ao filme pra mostrar pros haters que eles estavam errados e que o filme não ia flopar?

E claro, se eles terão que tratar de pautas mais delicadas, é muito mais fácil e lucrativo lidar com questões identitárias do que... sei lá, exploração trabalhista, genocídio da juventude negra, demonização das religiões de matriz africana, os massacres dos E.U.A. na busca por petróleo ou qualquer um desses, que vá incomodar de verdade os poderosos e seus seguidores.

E qual a saída pra isso?

Não sei.

Talvez procurar mais a arte de artistas negros independentes, e não só dos ligados a empresas enormes. 

Aliás, vocês percebem que os elencos dos filmes do Jordan Peele - diretor famoso por trabalhar com protagonismo negro - está quase todo aqui? Parece até que só existem eles de atores pretos disponíveis. Ou então, que eles só podem usados em filme de maioria negra.

Mas calma, calma. Não tô dizendo com isso que não gostei do filme. Eu ainda tô falando da obra que eu disse que me emocionou bastante. Achei divertido também de assistir. 

Muita coisa aqui tá bem executada, alguns takes, alguns planos. Eu destaco as atuações, da Angela Bassett (Rainha Ramonda) e da Danai Gurira (Okoye) principalmente. A Bassett simplesmente entrega tudo aqui, e a primeira metade do filme é ela quem carrega.

Eu gostei. Só não acho que a gente tenha que ver a obra acriticamente, se iludindo, achando que só por o filme existir, as coisas vão mudar ou estão mudando. 

Claro, é ótimo o nosso protagonismo. Quando eu era criança não tinha SUPER-HERÓIS pretos entre os grandes filmes desses estúdios. Mas não nos empolguemos demais. Isso é um passo pequeno. O Killmonger ainda é retratado só como um vilão.

Luciano Felizardo

Luciano é escritor e sua cabeça gira em torno disso. Nesse espaço, vai falar sobre obras de arte (filmes, livros, músicas, etc) e as reflexões que teve a partir delas. Além de, vez e outra, tentar simplificar e trazer para o nosso cotidiano alguns conceitos de filosofia, política e psicologia - área na qual vem se graduando pela Ufal.
Suas obras podem ser adquiridas no site da Editora Ipê Amarelo ou entrando em contato com ele através do Instagram (@vezeoutrapoesia).

Ver todos os posts