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Entergalactic e os novos clichês

Por Luciano Felizardo 07/11/2022 21h09
Por Luciano Felizardo 07/11/2022 21h09
Entergalactic e os novos clichês
Imagem de Entergalactic, animação da Netflix - Foto: Imagem do Pinterest

Dia 30 de setembro a Netflix lançou Entergalactic, longa metragem de animação criado por Kid Cudi e dirigido por Fletcher Moules.

Eu o assisti recentemente, e que coisa bonita. Estava passeando pelo aplicativo quando ele me joga o trailer na cara, e de imediato já fiquei hipnotizado. 

A cena era do protagonista andando de bike pela ilha de Manhattan (NY). Me lembrou muito Homem-Aranha no Aranhaverso. Os movimentos bonitos, as cores vivas e vibrantes, um traço puxado pra o cartunesco mas que faz um uso excelente dos brushs que o digital proporciona, tudo muito encantador para os olhos.

Mas e a história?

Aí é que tá. É bem boa. Legal. Uma historinha de amor bem bonita, mas até certo ponto, bem comum. Não vai ter nada no enredo que lhe surpreenda, o que me faz pensar nos [como dito no título] "novos clichês".

Me parece - e parece que não é só pra mim, já que vi mais gente falando - que com o espaço que agora as grandes produções vêm dando para as pautas identitárias, nós estamos passando por um momento de releitura de clichês.

E como seria isso?

Como é nesse filme. Temos uma história dessas que já vimos tantas e tantas vezes - um casal se conhece por acaso, ele é novo ali, vai morar do lado dela, se esbarram, ela tá enrolada, ele tá enrolado, tentam terminas suas coisas mas têm medo de se assumirem de um jeito mais sério [que parece ser o tema mais recorrente dos romances atuais], tem date na chuva, tem os dois indo com calma por respeito ao outro, tem o problema do tipo "você tá me traindo?" mas que não passa de um grande mal entendido e etc etc etc - porém, dessa vez, temos protagonistas negros.

Os povos marginalizados - negros, latinos, LGBTs, indígenas - foram excluídos do palco durante tanto tempo, que agora que um espacinho surgiu, tenho visto esses clichês sendo revistados, mas com esses povos em destaque. Dificilmente nós tínhamos um filme sobre amor com casal negro, a não ser que todo o elenco fosse negro. Em Entergalactic não, os personagens são das mais diversas cores [ao que em dado momento do filme associam ao colorido da cidade], de diferentes contextos, e dos mais variados empregos, alguns que até um dia desses eram desvalorizados em narrativas assim (e que seguem desvalorizados fora delas kk).

Se a missão era essa, o filme cumpre sem decepções. Entregam um casal clichê pra o público negro, que raramente se via representado ali.

Em alguns pontos, acho que até mesmo se valem dos clichês para ultrapassá-los. Um exemplo disso é no texto das personagens femininas. É fato que nos blockbusters em geral, ao longo de muitas décadas, as mulheres eram sempre personagens planas, subdesenvolvidas, e suas falas, sentimentos e atitudes, eram sempre referentes aos homens. Aqui o filme se apoia no tema central, que é o romance, para separar os personagens em dois núcleos (o ciclo de amizades do Jabari e o da Meadow), e no dela eles falam sobre ele, e no dele sobre ela. Isso podia descambar numa monotonia sem tamanho, mas permite, por exemplo, que tenhamos personagens femininas falando abertamente sobre sua sexualidade, suas vivências sexuais, seus desejos, suas preferências e etc.

Claro, o fato de o filme ser +18 contribui em muito pra isso, mas não invalida a questão. 

A classificação indicativa, além disso, permite que outros temas sejam trazidos para o centro da narrativa (ou para seus arredores), como por exemplo a relação dos personagens com o uso da maconha, que é legalizada em Nova York.
{Aqui eu acho que é necessário um esclarecimento: não estou querendo, com o parágrafo acima, incentivar o uso ou o desuso de nada. O que eu citei é puramente a título de curiosidade. Se não existe no espectador curiosidade por outros contextos culturais, duvido que existe verdadeira curiosidade pela arte.}
[E é meio triste ter que "se explicar" desse jeito, mas num país em que as pautas são debatidas com uma inflamação moral tão ávida, acho que ainda tem que ser assim. Prossigamos.]

Outro ponto positivo é a forma como a animação transita por diferentes estilos. Pra explicar isso, talvez seja bom eu falar antes sobre modos narrativos, então lá vai:

Existem 3 grandes modos. O épico, o lírico e o dramático. Falando bem resumidamente, o épico é quando alguém lhe conta algo, o dramático é quando você vê a história acontecendo, e o lírico é quando a história se passa através de formas poéticas e simbólicas.

E sobre essas três maneiras, o ponto é: o filme as aproveita muito bem. Quase toda a história se passa no modo dramático, ou seja, vemos o desenrolar das coisas. Porém, vez e outra algum personagem nos conta histórias suas. Nesses momentos temos uma mudança nos elementos da animação, que parece se adequar ao estilo da história contada. Em outros momentos, quando há um êxtase, o lírico entra de forma belíssima.

Um exemplo é quando Jabari dá carona pra Meadow de bicicleta, e o filme sai do cenário das ruas de NY e nos mostra os dois flutuando pelo espaço.

No final de tudo isso, o resultado é um filme muito agradável. 

Não vai lhe apresentar coisas novas. Vai deixar de aprofundar em temas que poderiam ser interessantes - como o trabalho do Jabari - em detrimento do romance? Sim. Mas ainda assim, vai ser um filme agradável. 

Tira uma noite, chama teu crush, faz uma pipoca, compra pizza ou chocolate (ou pizza de chocolate) e assiste isso aí entre abraços quentinhos. Vai ser massa.

Fica a indicação.

Luciano Felizardo

Luciano é escritor e sua cabeça gira em torno disso. Nesse espaço, vai falar sobre obras de arte (filmes, livros, músicas, etc) e as reflexões que teve a partir delas. Além de, vez e outra, tentar simplificar e trazer para o nosso cotidiano alguns conceitos de filosofia, política e psicologia - área na qual vem se graduando pela Ufal.
Suas obras podem ser adquiridas no site da Editora Ipê Amarelo ou entrando em contato com ele através do Instagram (@vezeoutrapoesia).

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