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Vejam Paper Girls (e leiam Angela Davis)

Por Luciano Felizardo 27/10/2022 21h09
Por Luciano Felizardo 27/10/2022 21h09
Vejam Paper Girls (e leiam Angela Davis)
Poster de divulgação da série Paper Girls, da Amazon Prime - Foto: Imagem do Pinterest

Quando assisti o primeiro episódio, fiquei surpreso por não ter ouvido ninguém falando sobre essa série.

É realmente muito boa.

Talvez tenha pecado no timing, é verdade, e pra explicar melhor, deixa eu falar:
Os temas já foram exaustivamente abordados.

A série é baseada no gibi do Brian K. Vaughan e do Cliff Chiang (2016) e o plot se ampara, basicamente em viagem no tempo - e um tanto de nostalgia.

Acho, aliás, que muita gente que só viu a série {eu, inclusive, não li o gibi} deve ter pensado "isso é uma cópia de Stranger Things", mesmo que a hq seja anterior à obra dos Duffers - assim como eu vi uma galera que não quis ver It, a Coisa porque supostamente "parecia um ST 2.0".

E quanto a isso, cabe no mínimo uma observação: por que será que ultimamente temos tantas obras de sucesso sobre viagem no tempo (Vingadores Ultimato, Loki, Dark, Umbrella Academy etc), tantas obras que se amparam na nostalgia dos anos 80 e 90 e tantas protagonizadas por crianças?

Em relação a viagem no tempo, eu imagino que seja porque é essa a barreira que a gente ainda não conseguiu quebrar enquanto humanidade. Já podemos voar, dar a volta ao mundo em questão de horas, já fomos à lua, já podemos nos comunicar instantaneamente com gente do mundo todo, mas ainda somos reféns do tempo. [Essa explicação não é fato, é só uma hipótese minha.]

E em relação à nostalgia, já temos evidências do quanto isso é comercializável. Vejamos as próprias obras já citadas e a subcultura geek em geral, na qual vemos adultos fantasiados dos personagens que eles gostavam na infância. Isso talvez se dê pela complexidade do mundo atual exigir demais e por diversas vezes nos fazer sentir derrotados pela impotência, o que remete muitos de nós à saudade de quanto tudo era supostamente mais fácil (infância) e quando tínhamos adultos pra resolver nossos problemas. Talvez seja isso. O peso existencial que temos que suportar, a responsabilidade inevitável de lidarmos com nossas escolhas.

Mas deixemos isso de lado, o foco é Paper Girls, e em Paper Girls temos isso de viagem no tempo, o diferencial aqui é a abordagem.

Em Dark, por exemplo, o foco é nos meandros da viagem em si, nas realidades paralelas criadas, nos paradoxos temporais aparentemente inquebráveis, na inexistência da diferença entre passado, presente e futuro sob aquela ótica. Claro, os personagens são todos bem desenvolvidos e têm seus fortes dramas internos, mas em Paper Girls o foco é bem menos na teoria, e bem mais no choque que seria se nós mesmos pudéssemos nos ver no passado ou no futuro. 

Como você, seria se sua versão infantil encontrasse sua versão adulta? Seus sonhos teriam se realizado? Seus medos teriam sido enfrentados? Ou você teria mudado tanto a ponto de achar que deixou de ser leal a si mesma? Esses dilemas são impensáveis em Dark, mas bem explorados aqui.

Audiovisualmente também é uma obra bem satisfatória [prestem atenção na cena da KJ chorando na moto. É uma sequência primorosa].

E se você disser que tem umas falas superestranhas, como se um roteirista da malhação tivesse pedido pra Mac disparar algo rude totalmente fora de contexto, eu vou ter que concordar, mas depois de meio episódio isso parou de me incomodar. É dos males o menor.

A essa altura do campeonato, entretanto, já deve estar bem claro que os textos nesse espaço vão sempre envolver algum teoria advinda das humanidades. 

E qual é a da vez?

Mulher, Raça e Classe, da Angela Davis.

Durante muito tempo se levou em consideração a questão da luta de classe, mas como sendo protagonizada por apenas dois grupos, sendo eles o proletariado e a burguesia. A história, porém, nos fez constatar que - infelizmente - não tem como negar o caráter étnico da coisa. O regime escravagista deixou óbvio que, além de proletário e burguês, havia o senhor de engenho e os homens escravizados, branco e negros respectivamente. E que dentro dessa diferença étnica, a diferença de gênero se acentuava. Enquanto mulheres brancas lutavam pelo direito de trabalhar, mulheres negras já trabalhavam e precisavam lutar pra ter pelo menos o mínimo de dignidade no trabalho.

O que Angela Davis trouxe no livro supracitado é que existem três instancias de discriminação: a de gênero, a de classe e a de raça, e que essas três são indissociáveis. 

Quer um exemplo? A famosa foto de Carolina Maria de Jesus ao lado de Clarisse Lispector, sobre a qual um jornalista escreveu que Clarisse estava ao lado de uma moça, "provavelmente sua empregada". Não é caso isolado, vemos isso no cotidiano. Se numa loja estão um negro esbanjando grife e um "mau vestido", o que aparenta ser rico vai ser melhor atendido, a menos que chegue um branco rico, aí este será prioridade.

A série não é panfletária. Não. Aborda essas questões de forma relativamente fluida. O debate surge, mas não como uma aula, surge como uma coisa real da vida diária, como de fato é.

Logo no primeiro episódio vemos as protagonistas serem atacadas por meninos que se sentem no direito de fazer isso, e precisam mobilizar o grupo todo pra contornar a situação.

O grupo é formado por Mac, menina branca e pobre, Erin, menina asiática, Tiffany, menina negra - estas duas parecem vir de famílias mais estáveis financeiramente - e por fim, KJ, menina judia e rica. É interessante perceber na própria dinâmica de grupo como essas instancias sociais de opressão atuam. KJ, mesmo sendo a única rica do grupo, por vezes se sente atacada por Mac, que é pobre e chega a criticar os não-brancos por "roubarem as vagas de emprego dos verdadeiros americanos", ao mesmo tempo que Mac se sente inferior a KJ por diversas vezes, porque mesmo estando num lugar etnicamente privilegiado na sociedade, vê a amiga usufruindo de regalias financeiras - que ela sabe que provavelmente nunca alcançará - e reclamando de coisas que comicamente seriam caracterizadas como "white people problems".

A abordagem do tema não é perfeita, entretanto. A série acaba caindo em estereótipos que pretende criticar [Será que é problema recorrente da Prime? Porque The Boys propõe uma crítica às grandes corporações, mas é feito pela Amazon. Não sei. Deixo a critério de vocês como sempre, tenho mais perguntas que respostas - retomando o rolê do estereótipo:] como o da asiática inteligente e aplicada e dedicada e estudiosa e tal e tal e tal, ou o da mulher negra arrasadora que se veste como um carro alegórico e vai mexer o pescoço de um lado pro outro e estalar os dedos a qualquer momento. 

Não sei se isso vem da hq. Como falei, não li. Mas pode ser. Sei que tem um gibi do Vaughan que ele pretende abordar algumas questões do Canadá e cai em estereótipos também - mesmo tendo esposa canadense.

Mas, repetindo um veredito dado acima: é dos males o menor. O saldo final é positivo. Eu indico forte. Assisti quase que de uma vez só. As cores são bonitas, as personagens são cativantes, a história é divertida, os episódios são instigantes, e no mais... assistam Paper Girls e leiam Angela Davis.

Luciano Felizardo

Luciano é escritor e sua cabeça gira em torno disso. Nesse espaço, vai falar sobre obras de arte (filmes, livros, músicas, etc) e as reflexões que teve a partir delas. Além de, vez e outra, tentar simplificar e trazer para o nosso cotidiano alguns conceitos de filosofia, política e psicologia - área na qual vem se graduando pela Ufal.
Suas obras podem ser adquiridas no site da Editora Ipê Amarelo ou entrando em contato com ele através do Instagram (@vezeoutrapoesia).

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