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She-Hulk e a Sombra Junguiana

Por Luciano Felizardo 13/10/2022 20h08
Por Luciano Felizardo 13/10/2022 20h08
She-Hulk e a Sombra Junguiana
Pôster da série She-Hulk, da Disney+ - Foto: Imagem do Pinterest

Hoje saiu o último episódio de She-Hulk.

Depois de me decepcionar com What If, Miss Marvel, Cavaleiro da Lua e Gavião Aqueiro, achei que a Marvel tinha perdido a mão de vez. Fui assistir essa série com zero expectativas e... eu gostei. Série legal. Sério. Achei bem boazinha. Nada incrível, verdade, mas divertida. Trabalha alguns tópicos com relativa assertividade. Virada interessante no final. 

Não vou aqui falar sobre o cgi (kkkk) nem aprofundar no tópico das técnicas de audiovisual, vou falar (de novo) de Carl Jung.

Queria fugir dele, mas desculpem, não tem jeito.

E o conceito da vez, qual é?

Pois bem. Já ouviram falar de Sombra?

Jung esquematizou nosso aparato psíquico de acordo com sua teoria, a Psicologia Analítica, e nesse aparato nós temos o Ego, a Anima e o Animus, o Inconsciente, o Inconsciente Coletivo, o Self, a Persona e a Sombra. Para cada um desses cabe textos imensos se eu quiser dar conta de explicar, e é provável que mesmo assim eu não dê, já que a teoria é vasta e a literatura referente também. Mas sobre a Sombra dá pra gente falar um pouquinho. O que ela seria? Bem... basicamente, o seu lado "mau". 

[Aqui no blog tem um texto falando de The Boys e o inconsciente Junguiano, então se precisar aprofundar em algum conceito que venha a surgir e já tiver sido trabalhado no outro artigo, corre lá e depois volta pra esse. Agora voltando pra Sombra: ]

Ela seria aquilo que a gente reprime, aquilo que (individual e coletivamente) consideramos errado, aquilo de que nos envergonhamos ou com o qual não queremos lidar.

E o que é que isso tem a ver com She-Hulk?

Bom... me parece que Hulk é uma representação desse conceito. Não sei se era nisso que mestre Stan Lee pensava quando criou o personagem, provavelmente não (pelo menos não nesses termos), mas não é sobre o que a obra queria trazer que nós normalmente tratamos, é sobre o que ela traz.

O Hulk, se formos colocar em palavras bem simples, é a perda do controle de Bruce Banner. É o que ele não quer, é o que ele empurra pra baixo do tapete, é a raiva escondida que ele não consegue mais segurar. E quanto mais raiva, mais poderoso é o Hulk. Aliás, em alguns quadrinhos e até mesmo no filme dos Vingadores (2012) é possível, ver o Hulk se movimentando de formas que lembram a de um gorila ou algo próximo, o que podemos associar rapidamente à nossa própria condição animalesca enquanto primatas, e em alguns gibis mais antigos, podemos vê-lo até mesmo em posição fetal, o que nos remete a quando ainda não tínhamos discernimento sobre nossos próprios sentimentos. 

O Professor Hulk (que é o corpo do monstro com o cérebro do homem) como vemos em Vingadores Ultimato (2019) e agora na série em questão, só é possível após a reconciliação entre Banner e seu lado renegado.

Então quer dizer que deveríamos fazer tudo que achamos e errado e pôr em prática todas as coisas das quais nos envergonhamos?

Não é por aí.

Na Psicologia Junguiana entende-se que abraçar a sombra é necessário, o que não quer dizer que devemos dar vazão a ela. A caminhada é em outra direção. O objetivo é, basicamente, trazer tudo isso à consciência. O entendimento que a teoria tem é de que, se você não conhece suas próprias falhas, você não saberá lidar com elas. Se você não sabe, por exemplo, que tem a tendência a perder o controle sempre que tem raiva, não conseguirá criar meios para lidar com seu descontrole, não conseguirá treinar sua consciência emocional e seu auto-controle, procurar ajuda nas artes marciais para praticar a resolução de conflitos ou o afastamento deles, não cogitará procurar ajuda terapêutica nem desenvolver hábitos que lhe deixem mais tranquilo, não perceberá quais situações despertam o seu pior lado para que seja possível sair delas antes de começarem e etc.

O que dá a entender é que a Jen controla seu Hulk justamente por isso. Ela sabe exatamente quem ela é e o que ela teme. Talvez haja aí uma crítica (não tão) sutil ao machismo e à tão falada masculinidade tóxica, já que os homens da nossa sociedade não são ensinados a reconhecer suas emoções, muito menos a lidar com elas de forma saudável.* O próprio Jung disse certa vez que "se você quer ter galhos que toquem os céus, precisa ter raízes que cheguem ao inferno", ou seja, quanto mais alguém souber a respeito das próprias falhas, dos próprios defeitos e de como eles agem e funcionam, maior vai ser a chance desse alguém de se tornar um ser elevado, bondoso, gentil. Bruce não sabe o que fazer com o Hulk e destrói tudo. A Jen, por outro lado...

Tanto é que, no penúltimo episódio, pega de surpresa, Jennifer se vê numa situação absurda, desesperadora, e sem poder distinguir as próprias reações emocionais, põe abaixo o lugar onde está, apavorando a todos ao redor e principalmente a si mesma.

O que fica disso? Então... procure ajuda. É sempre bom saber lidar com seu Hulk, e psicólogos (Junguianos ou não) saberão lhe orientar a respeito.


* (Alerta para possível spoiler:) a discussão sobre questões de gênero e suas influências sociais parece ganhar uma nova camada nesse último episódio, já que um só descontrole de Jen a faz ser presa e temida, enquanto seu primo, Bruce, passou por toda uma série de descontroles e mesmo assim, no fim das contas, é tido como um herói.


Ps.: Psicólogos da Analítica, se me equivoquei em algum ponto, sintam-se à vontade para me ajudar a corrigir!

Luciano Felizardo

Luciano é escritor e sua cabeça gira em torno disso. Nesse espaço, vai falar sobre obras de arte (filmes, livros, músicas, etc) e as reflexões que teve a partir delas. Além de, vez e outra, tentar simplificar e trazer para o nosso cotidiano alguns conceitos de filosofia, política e psicologia - área na qual vem se graduando pela Ufal.
Suas obras podem ser adquiridas no site da Editora Ipê Amarelo ou entrando em contato com ele através do Instagram (@vezeoutrapoesia).

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