Após 10 anos, pilotos do jato que bateu em avião da Gol ainda não cumpriram pena

Por Agência Brasil 29/09/2016 09h09 - Atualizado em 29/09/2016 12h12
Por Agência Brasil 29/09/2016 09h09 Atualizado em 29/09/2016 12h12
Após 10 anos, pilotos do jato que bateu em avião da Gol ainda não cumpriram pena
Foto: Divulgação/Força Aérea Brasileira/Sd Delgado (Cecomsaer)
Dez anos depois do acidente aéreo que provocou a morte de 154 pessoas, os dois pilotos condenados ainda não foram presos. Os norte-americanos Joseph Lepore e Jean Paul Paladino, que pilotavam o jato Legacy que se chocou com o boeing da Gol, foram condenados a reclusão de três anos, um mês e dez dias em regime aberto, mas ainda não foram notificados da sentença.

A condenação final dos pilotos foi definida em outubro do ano passado. Em maio deste ano, a Justiça Federal determinou que os pilotos se manifestem sobre o local em que preferem cumprir a pena: no Brasil ou nos Estados Unidos.

A sentença está sendo traduzida pela Secretaria de Cooperação Jurídica Internacional do Ministério Público Federal e deve ser encaminhada ao Ministério da Justiça, que enviará a decisão para os Estados Unidos. Depois de intimados, os pilotos, que moram no estado de Nova York, terão 15 dias para se manifestar, e a partir daí a pena começa a valer.

“Acredito que eles vão querer cumprir a pena nos Estados Unidos obviamente, porque nunca demonstraram interesse em voltar para o Brasil, tanto que foram interrogados lá”, diz o advogado da Associação de Familiares e Amigos das Vítimas do Vôo 1907, Rogério Botelho. O Brasil e os Estados Unidos são signatários da Convenção de Manágua, que autoriza a transferência de sentenças penais.

Rosane Gutjahr, que perdeu o marido no acidente, diz que a pena dada aos pilotos é “ridícula” e critica a demora na aplicação da sentença. “Até agora, na prática não aconteceu nada com eles, estão livres, leves, soltos, voando, trabalhando normalmente, como se nada tivesse acontecido”, diz Rosane, que é diretora da associação.

A psicóloga Neusa Machado, esposa de uma das vítimas, também considera a pena branda. “Acredito que eles não deveriam estar pilotando o avião. Eram duas pessoas jovens, que não tinham experiência”, avalia. Salma Assad, que perdeu o sobrinho no acidente, considera que as leis do Brasil têm muitas brechas. “O avião é uma arma engatilhada. E eles não tinham preparo para pilotar aquele jato, isso está comprovado, eles mesmos perceberam que os aparelhos estavam desligados”, diz.

Na avaliação do advogado das vítimas, no entanto, apesar de ser branda, essa é a pena prevista na legislação para o crime de atentado contra a segurança aérea. “É uma pena intermediária, mas é uma pena branda, três anos em regime aberto para 154 mortos”, diz Botelho. Segundo ele, o regime aberto nos Estados Unidos é parecido com o do Brasil, com reclusão à noite e nos fins de semana. “É até um pouco mais severa nos Estados Unidos porque lá existe uma fiscalização maior, existe a possibilidade de tornozeleira eletrônica e existe o fiscal da condicional - se eles infringirem a liberdade vigiada, vão para uma mais gravosa”, diz o advogado.

A Agência Brasil entrou em contato com o advogado dos pilotos do Legacy no Brasil, mas não obteve retorno.

Colisão entre aeronaves

O acidente aconteceu no dia 29 de setembro de 2006, quando o Boeing 737-800 da Gol, que voava de Manaus para Brasília, foi atingido em pleno voo por um jato Legacy pilotado por Lepore e Paladino, que ia de São José dos Campos em direção a Manaus.

O choque entre as duas aeronaves ocorreu por volta das 20h, a 37 mil pés de altitude, na região norte de Mato Grosso. A ponta da asa esquerda do jato Legacy colidiu com o boeing da Gol, provocando a desestabilização e a queda do avião em uma área de floresta. O jato Legacy conseguiu pousar na Base Aérea da Serra do Cachimbo, no Pará.

A conclusão das investigações foi de que os pilotos do Legacy desligaram o transponder, um aparelho obrigatório que informa a posição e altitude das aeronaves aos controladores de voo, e o TCAS, que informa ao piloto a existência de outros aviões nas proximidades.

Além dos dois pilotos, a denúncia do Ministério Público Federal pediu a condenação de quatro controladores de voo por condutas que caracterizariam atentado contra a segurança de transporte aéreo. Os controladores foram absolvidos na justiça comum, mas Jomarcelo Fernandes dos Santos foi condenado pela Justiça Militar por homicídio culposo.

Para o MPF, os controladores tinham o dever legal de tomar providências para evitar o acidente, informando sobre a falta de comunicação com o jato ao centro de controle do espaço aéreo de Manuas. Para Rosane Gutjahr, os controladores não tiveram culpa pelo acidente. “Os pilotos desligaram o rádio, o transponder, como os controladores iam entrar em contato? Não tinha como”, afirma.

Nos meses que se seguiram ao acidente, o país enfrentou um dos piores momentos da história da aviação civil. Em um movimento para denunciar excesso de trabalho, os controladores de voo iniciaram uma operação padrão, que resultou em longos atrasos e cancelamentos de voos. Em julho de 2007, a situação foi agravada com o acidente com o avião da TAM, no aeroporto de Congonhas, que resultou na morte de 199 pessoas.

Famílias fizeram acordos

A maioria das famílias das vítimas fez acordo com a Gol logo depois do acidente para receber as indenizações. “Muita gente não tinha condições de enfrentar um processo, por exemplo, uma pessoa que perdeu um marido ou mulher que sustentava a família, então a grande maioria fez acordo logo após o acidente”, explica o advogado Daniel Roller, que cuida de processos administrativos de diversas famílias.

Segundo ele, cerca de 80% das famílias entraram em acordo com a companhia aérea, mas aproximadamente 30 entraram com processo na Justiça. Alguns fizeram acordos dentro da ação judicial, outros esperaram o julgamento. O valor das indenizações foi calculado de acordo com a idade e o salário do familiar que morreu no acidente.

Segundo Salma Assad, tia de uma das vítimas, os valores das indenizações pagas variam entre R$ 100 mil e R$ 1,5 milhão. “Teve gente que não quis nada, o que a seguradora da Gol ofereceu, foi aceito", diz. Como seu sobrinho, Átila Assad, não tinha salário e dependia dos pais, a família recebeu apenas indenização por danos morais.

Rosane Gutjahr foi uma das familiares que não quis fazer acordo com a companhia aérea e levou adiante os processos na Justiça contra a empresa, que foi condenada a pagar indenização por danos morais e materiais para a viúva e uma pensão de cerca de R$ 8 mil por mês para a filha Luiza, que tinha 4 anos quando o pai morreu no acidente. Ela também irá mover um processo contra os dois pilotos do Legacy na Justiça dos Estados Unidos.

“Eu não aceitei qualquer acordo, as outras famílias aceitaram, não as culpo. Recebi proposta de US$ 2,5 milhões, depois de US$ 5 milhões para desistir dos processos no Brasil e lá fora. Mas não desisti, não abri mão. Eu não vou vender a minha dignidade, da minha filha, do meu marido por dinheiro nenhum. Eu tenho uma vida confortável, mas mesmo se não tivesse eu não aceitaria, porque tem coisas que não são vendidas”, diz Rosane. Ela diz que as indenizações que já recebeu foram doadas para entidades filantrópicas.

A companhia aérea Gol não respondeu aos questionamentos da reportagem da Agência Brasil sobre o pagamento das indenizações às vítimas. Em nota, a empresa lamentou o acidente. “Nesses dez anos, carregamos o nosso pesar e solidariedade aos familiares e amigos das vítimas do acidente com o voo 1907, em 29 de setembro de 2006. Essa data será para sempre lembrada por nós com profunda tristeza”, afirma a Gol.

Lembranças

O estudante de medicina Átila Assad tinha 24 anos quando decidiu viajar de Manaus, onde estudava, para Brasília. Ele seguiria para Rubiataba (GO), onde mora sua família, para votar nas eleições. “O pai dele me ligou perguntando se eu tinha alguma informação do Átila, mas eu não sabia de nada. Depois, ele me disse que assistiu na TV que o avião estava desaparecido”, conta a tia de Átila, Salma Assad. Ela ainda se emociona quando lembra o último diálogo do sobrinho com a mãe. “Ela pediu para ele trazer uma sacola térmica e ele respondeu: 'viu'. Até hoje, quando alguém dá um recado, a gente fala 'viu' para lembrar dele”, diz Salma.

O marido de Neusa Felipetto Machado estava há 15 dias trabalhando em Manaus e voltava para Brasília no dia do acidente. Valdomiro Henrique Machado, 61 anos, pediu para que os dois netos, de 6 e 10 anos, fossem ao aeroporto para buscá-lo. “Ele era um super avô, dizia que era muito gostoso ser recebido pelos netos no aeroporto”. Neusa conta que ficou sabendo do acidente com uma ligação da nora, que assistia ao noticiário pela televisão. “Aí foi uma tristeza. Eu já sabia que era o avião dele, era o horário em que ele iria chegar. Sentei no tapete e ali fiquei a noite toda”.

As duas contam que foi muito difícil obter informações sobre as causas acidente. “Gastamos muita sola de sapato, implorávamos para acelerar as investigações, e era muito demorado. E isso foi muito dolorido”, diz Neusa. O corpo do marido dela foi identificado 13 dias depois do acidente. “Até então, eu pensava que ele deveria estar no meio dos índios, acendendo fogueira e contando piada”.

Entre as 154 vítimas do acidente estavam dois funcionários da Radiobrás, empresa pública que foi incorporada em 2008 pela Empresa Brasil de Comunicação (EBC). Osman de Oliveira Melo e Francisco Alves de Oliveira retornavam de uma viagem a Tabatinga, no Amazonas, onde trabalharam na instalação e manutenção de um transmissor da Rádio Nacional da Amazônia.